23 de fevereiro de 1965. Em uma casa no subúrbio de Montevidéu, Uruguai, um homem jaz morto. Ele foi assassinado com dois tiros na cabeça, após uma longa luta com seus algozes. Os assassinos colocaram seu corpo em uma mala, e abandonam o imóvel. No dia seguinte, comunicam a imprensa uruguaia sobre o corpo, e os motivos do crime. Como os repórteres uruguaios não acreditaram na história dos criminosos, o corpo só foi encontrado 11 dias depois, após os assassinos entrarem em contato novamente.

Dentro da mala, além do corpo, já em avançado estado de decomposição, encontraram também um bilhete que, além de explicar o crime, era assinado por “aqueles que nunca esquecem”. A história contada acima, apesar de parecer tirada de um livro ou filme de ficção, é verdadeira. O homem assassinado, cujo corpo foi abandonado numa mala, era Herberts Cukurs, oficial e herói da Força Aérea da Letônia, e colaborador nazista durante a Segunda Guerra Mundial, acusado de ser responsável por mais de 30 mil mortes. Ficou conhecido entre judeus como o “Enforcador de Riga” (capital da Letônia), e fugiu para o Brasil, em 1946, sem nunca ter sido julgado por seus crimes, vivendo tranquilamente, até o dia da sua morte. E para dar ainda mais ares de quase ficção à história, os assassinos eram ninguém menos que agentes do MOSSAD, o temido serviço secreto do Estado de Israel, que foram enviados à América do Sul com o único propósito de eliminar Cukurs. Este episódio histórico foi retratado pelo canal NatGeo, em 2012, na série Caçadores de Nazistas na América Latina.

Parece estranho aos leitores, a maioria operadores de direito, que eu tenha iniciado este artigo jurídico lembrando um caso histórico (que, do ponto de vista legal, claro, foi repreensível, pois Cukurs deveria ter sido formalmente acusado e julgado por seus crimes). Mas o assunto deste artigo trata de um direito que tenta separar história do direito individual de não ser eternamente lembrado; o direito ao esquecimento. E o que me motivou a escrever este artigo, utilizando como introdução a história de Cukurs, foi justamente a assinatura utilizada pelos agentes israelenses; “aqueles que nunca esquecem”.

Isso porque o direito ao esquecimento cria uma grande polemica; pode se desprezar a história afim de preservar o direito do indivíduo? É correto impedir as pessoas a terem acesso a história de crimes passados com o objetivo de uma pessoa ou uma família ter preservado o seu direito à privacidade?

E a polemica tende a aumentar, em especial porque, pela primeira vez em nosso país, o Superior Tribunal de Justiça aplicou a tese do direito ao esquecimento, em 2013, ao julgar dois recursos especiais, sendo que o primeiro figurava como autor da ação um dos acusados e posteriormente absolvido no episódio que ficou conhecido como “a chacina da Candelária” no Rio de Janeiro (REsp 1.334.097/RJ) e o segundo pela família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens (REsp 1.335.153/RJ).

Nos dois casos, tanto o acusado e depois absolvido no caso da chacina da Candelária, como os familiares do caso Aída Curi pretendiam receber indenização por danos morais em face do uso, não autorizado, da imagem no programa de TV “Linha Direta”, antigo programa da Rede Globo, exibido nas noites de quinta-feira entre 1999 e 2007, que se dedicava a apresentar crimes que aconteceram pelo Brasil e que causaram comoção pública. Ambos os casos se tornaram célebres na história do país, não somente pelas circunstâncias em que os fatos aconteceram, mas também por conta da repercussão que alcançaram. O caso de Aída, por exemplo, se estendeu por três julgamentos pelo Tribunal do Júri, e envolvia jovens personalidades de famílias conhecidas da cidade do Rio de Janeiro, que atraíram Aída para uma armadilha num prédio, tentaram violentá-la, e posteriormente a jogaram da sacada, com a intenção de convencer as autoridades de que a moça havia cometido suicido.

Os dois processos aguardam julgamento final, e até gerou a convocação de uma audiência pública pelo STF, presidida pelo Ministro Dias Tófoli, relator do caso dos irmãos de Aída, no dia 12 de junho de 2017, para discutir o assunto.

Segundo o site de notícias do STF [1], o Tribunal terá que decidir sobre uma controvérsia que envolve princípios fundamentais da Constituição brasileira: o direito ao esquecimento com base no princípio da dignidade da pessoa humana, inviolabilidade da honra e direito à privacidade x liberdade de expressão e de imprensa e direito à informação.

Em debate realizado no dia 21 de agosto de 2017, a Ministra Carmem Lúcia, atual presidente do STF, disse que a corte encontrará um equilíbrio para que a liberdade de expressão não fira a dignidade das pessoas, ao mesmo tempo em que a liberdade de uma pessoa não se sobreponha à de outras pessoas [2].

Nesse meio tempo, a 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou o direito ao esquecimento, determinando a exclusão de links em buscas, no julgamento da Apelação Cível nº 1073052-18.2014.8.26.0100, sob o entendimento de que “… O exercício do direito ao esquecimento se mostra viável sempre que tenha havido lesão ou ameaça de lesão a direito da personalidade ou violação à dignidade da pessoa humana…”[3].

Mas afinal, o que é direito ao esquecimento, e porque tanta polemica?

O direito ao esquecimento é o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos, posto que, em tese seriam antigas e obsoletas.

Entretanto, as palavras da Ministra Carmem Lúcia bem definiram o tamanho da controvérsia: onde termina a liberdade de expressão e se inicia o direito à privacidade?

Apesar da discussão ser atual e bastante polemica, o Direito ao esquecimento não é uma novidade por conta do advento da internet, como muitos imaginam. O direito ao esquecimento é um conceito que vem sendo amplamente debatido na Europa desde o final dos anos 60. Ele trata especificamente do direito de uma pessoa não ter exposto ao público um fato que, mesmo verídico, possa lhe causar transtornos e sofrimento.

Os precedentes desse direito estão na ideia de que, por exemplo, um indivíduo que tenha cumprido pena na prisão não seja prejudicado por isso ao procurar um emprego e se reinserir na sociedade. O fato concreto mais conhecido e mencionado é o chamado “caso Lebach” [4], julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, que decidiu que um dos três condenados pelo assassinado de quatro soldados alemães, em 1969, após ter cumprido sua pena de 6 anos de reclusão, não poderia mais ter sua vida explorada por conta desse ato, devendo ser esquecido pela mídia.

O que traz à tona e torna esse direito relevante é justamente a globalização da internet, onde, com o apertar de alguns botões, se pode buscar inúmeras fontes de informações. Mas seriam realmente essas informações irrelevantes?

A Dra. Alzenira de Almeida, advogada associada do escritório Jflora Sociedade de Advogados, em respeitável artigo, publicado no dia 20 de junho de 2017 no site MIGALHAS [5], inicia sua argumentação com uma pergunta de extrema relevância: Personagens que tiveram nome e vida expostos em razão de envolvimento em fatos de grande repercussão e crimes que chocaram a sociedade têm direito de serem esquecidas pela opinião pública?

No suso mencionado artigo, a Dra. Alzenira termina sua exposição com uma conclusão que merece reflexão:

O cuidado do julgador ao enfrentar o tema no âmbito civil é de que todos os casos que estão sendo discutidos no Judiciário e que trazem o direito ao esquecimento sustentado pelo princípio da dignidade humana, não busquem indiretamente o desejo de aplicação desse princípio na sua forma mais primária e genuína, ou seja, não represente apenas um mero desejo do indivíduo de ver o seu pleito reconhecido em detrimento de outros direitos fundamentais, porque aí, e agora citando o filósofo e teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger, como o desejo é ilimitado, mais à frente, até mesmo criminosos vão querer ser deuses.

 

Afinal, não se pode esquecer os inúmeros políticos acusados (e até mesmo condenados) por vários crimes, que buscam a cada eleição um novo mandato, com a cristalina intenção de gozar do foro privilegiado assegurado por lei, e arrastar por anos processos criminais, até a sua prescrição.

Não cabe aqui discutir o princípio da dignidade humana, que é (e deve ser) protegido pela nossa legislação. Mas como bem colocado pela Ministra Carmem Lúcia, é preciso que o STF encontre um equilíbrio entre o direito à informação e o direito do indivíduo ser esquecido. Mesmo porque, tendo por base o caso Lebach, o Tribunal Constitucional Alemão decidiu que a proteção constitucional da personalidade não admite que a imprensa explore, por tempo ilimitado, a pessoa do criminoso e sua vida privada, e que o princípio da proteção da personalidade deveria prevalecer em relação à liberdade de informação.

Mas o sofrimento das famílias dos quatro soldados alemães mortos em 1969 durará para sempre. Não teriam elas o direito de dizer ao mundo porque seus filhos foram mortos, e quem teria sido o algoz, para inclusive questionar seus motivos?

No caso brasileiro da Chacina da Candelária, apesar do recorrente ter sido absolvido, evidencias legais o levaram a ser julgado com os demais acusados, e posteriormente absolvido. E isso é história, quer o recorrente goste ou não. Devem então as futuras gerações serem privadas dessa e de outras informações, que a justiça entender como irrelevante e defasadas ou obsoletas? Não se está sacrificando a liberdade de expressão e o acesso à informação?

Como cristão, acredito na redenção do ser humano; todos erram, e todos merecem sempre, não uma, mas várias segundas chances, até se redimirem e se encontrarem. Mas há fatos que não podem ser enterrados para preservar o direito de uma pessoa em detrimento de uma sociedade inteira. Como o caso do Enforcador de Riga, com o qual iniciei minha explanação. Ao assistir o episódio da série do NatGeo, ao final, os filhos do oficial nazista letão, assassinado pelos agentes do Mossad, além de mostrar sua indignação pela morte de Cukurs, veementemente contestaram a versão de que seu pai seria um criminoso de guerra, apesar da inúmeras evidencias que levaram os agentes do Mossad a caçá-lo e executá-lo de forma sumária em 1969, no Uruguai. Criou-se ali uma controvérsia sobre a culpa do oficial nazista. Se caso Herberts Cukurs estivesse vivo hoje, e gozando da liberdade que a fuga lhe concedeu, legalmente ele poderia ingressar com um pedido judicial de direito ao esquecimento, o que por si já seria uma afronta à memória de suas vítimas.

Há casos e casos, mas como bem colocado pela Dra. Alzira, opinião da qual eu compartilho, não se pode permitir que o desejo de criminosos se tornarem deuses seja atendido. Dependendo da decisão do STF, estará e abrindo um precedente extremante perigoso, ao se permitir judicializar o conceito de fato histórico relevante que pode ser explorado pela mídia ou até mesmo pelo cidadão comum.

O ativista kuwaitiano Nasser Dashti, ferrenho crítico do grupo terrorista Estado Islâmico (ISIS), em entrevista à rede de televisão de seu país, proferiu uma frase épica:

Toda nação progride se ela criticar a própria história.

E somente com o acesso à informação, sendo a liberdade de expressão de todas as formas garantida pela legislação, com o firme apoio da sociedade e de suas instituições, se pode progredir. Pois o acesso a informação revela fatos que posteriormente a história usará para condenar os que atentaram contra a dignidade e a liberdade do indivíduo.

E já que usei exemplos tão extremos, quero encerrar relatando um episódio do maior caçador de nazistas da história, Simon Wiesenthal (*31 de dezembro de 1908, +20 de setembro de 2005), que colaborou na captura e julgamento de mais de mil criminosos de guerra nazistas, que pensavam ter escapado para sempre da justiça. Em 1964, quando questionado por um amigo joalheiro sobre o motivo que o levara a se tornar um caçador de nazistas, Wiesenthal respondeu:

Quando chegarmos ao outro mundo e encontrarmos os milhões de judeus que morreram nos campos e eles nos perguntarem: ‘O que fizeram?’, haverá muitas respostas. Você dirá: “tornei-me um joalheiro”, outro falará, “Fui contrabandista de café e cigarros americanos”, um outro responderá, ‘Construí casas’, mas eu direi; ‘Não me esqueci de vocês.’

[1] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346408)

[2] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1911849-stf-encontrara-equilibrio-ao-julgar-direito-ao-esquecimento-diz-carmen.shtml).

[3]https://www.conjur.com.br/2017-ago-22/tj-sp-aplica-direito-esquecimento- determina-exclusao-links

[4] http://www.dizerodireito.com.br/2013/11/direito-ao-esquecimento.html

[5]http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI260646,11049-Direito+ao+esquecimento+e+a+dignidade+da+pessoa+humana

Weller Rodrigues de Lima

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